Estar aqui e Milena contra as forças inimigas (duas cartas de Kafka a Milena sobre presença e ausência)
Abaixo, duas das minhas cartas a Milena preferidas, escritas, depois de alguns meses de correspondência, após o encontro em Viena, ou mais precisamente, sob o impacto da separação que se seguiu ao impacto do encontro. Leio a primeira, com suas exclamações, como o esforço desesperado de recuperar, na escrita (através de um ardil da linguagem e do coração, como diz Carson), a presença de Milena.
O segundo parágrafo da primeira produz uma interessante triangulação dos advérbios dort (lá ou aí), da (aqui) e dasein (estar aqui, presença, existência): primeiro, Milena não estava mais lá (dort), na estação, onde se despedira de Kafka; em seguida, em vez de de repente estar lá, ela está aqui (da), dentro do vagão de trem, por meio da “bruxaria maligna das cartas”.
A segunda carta, a “incrível história da viagem”, também marcada pelo impacto da separação, narra as dificuldades de Kafka na imigração de Gmünd, fronteira entre a Áustria e a Checoslováquia, por onde precisava passar para voltar a Praga. Como num conto de fadas, Milena, das alturas, intercede contra as “forças inimigas” das autoridades burocráticas austríacas e Kafka, sem visto, atravessa a fronteira.
(Originais, para eventuais escrutínios de minhas habilidades, aqui: páginas 34 e 35 do pdf: https://www.odaha.com/sites/default/files/BriefeAnMilena.pdf)
Praga, 4 de julho de 1920
Domingo
Hoje, Milena, Milena, Milena — não consigo escrever mais nada. Mas vou escrever. Então, Milena, hoje só apressadamente, só cansaço e não estar aqui (isso porém também amanhã. Como não estar cansado se a um doente prometem quatro meses de férias no ano e lhe dão quatro dias e só um pedaço da terça e do domingo e ainda cortam fora as noites e as manhãs? Eu não teria razão em não estar inteiramente saudável? Não tenho razão? Milena! (dito na sua orelha esquerda enquanto você está aqui deitada nessa cama dura, num sono profundo e de boa procedência, se virando lentamente, sem saber, da direita para a esquerda, até a minha boca.)
A viagem? No começo foi bem tranquila, não havia nenhum jornal na plataforma. Razão para voltar correndo, você não estava mais lá, tudo normal. Então embarquei novamente, o trem partiu, comecei a ler o jornal, tudo ainda normal, um pouco depois interrompi a leitura, então de repente você não estava mais aqui, ou melhor, você estava aqui, eu sentia com todo o meu ser, mas essa sua forma de estar aqui era muito diferente da dos 4 dias e precisei primeiro me acostumar. Retomei a leitura. […] Então a abandonei, mas, quando olhei para fora, passou um trem em cujo vagão lia-se: Grein. Tornei a olhar para dentro. Diante de mim, um senhor lia o Národni Listy do domingo anterior, onde avistei um artigo de Ružena Jesenská [pseudônimo de Milena] , pedi o jornal emprestado, comecei a lê-lo, foi inútil, deitei-o e fiquei sentado junto do seu rosto, que tinha a exata expressão que teve na despedida na estação. Eu nunca havia visto um fenômeno natural desses na plataforma: a luz do sol se tornar difusa não por conta das nuvens, mas de si própria.
O que resta dizer? A garganta não obedece, as mãos não obedecem.
Seu
Amanhã, a incrível história do resto da viagem.
Praga, 5 de julho de 1920
Segunda de manhã
Recebi hoje cedo a carta de sexta-feira e mais tarde a carta da noite de sexta. A primeira tão triste, rosto triste de estação de trem, triste não tanto por conta do conteúdo quanto por estar obsoleta, tudo nela já passou, nossa floresta, nossos subúrbios juntos, nossa viagem de trem juntos. De fato não acaba nunca, essa nossa viagem de trem, sempre em linha reta subindo as ruas de pedra, voltando pelas alamedas sob o sol do entardecer, ela não termina e no entanto é uma brincadeira de mau gosto dizer que ela não termina. Autos e processos estão aqui espalhados diante de mim, algumas cartas que acabei de ler, saudações trocadas com o diretor (não dispensado) e de resto com colegas aqui e ali, enquanto um sininho soa no ouvido: “ela não está mais contigo”. Contudo, em algum lugar no céu, há um outro sino enorme que soa: “ela não te vai te abandonar”, mas o sino menor está bem dentro do ouvido. E então eis aqui novamente a carta da noite, é incompreensível como o peito consegue contrair e relaxar o suficiente para respirar esse ar, incompreensível como posso estar longe de você.
[…]
Agora a história da viagem, então quero ver você dizer que não é um anjo: eu sempre soube que o meu viso austríaco já havia expirado há 2 meses, como era para ser (e para não ser), mas me disseram em Merano que ele não seria necessário se eu só estivesse de passagem e, com efeito, não me pararam nenhuma vez ao entrar na Áustria. Por isso me esqueci completamente desse problema quando estava Viena. Porém, na seção de passaportes de Gmünd , o funcionário — um rapaz jovem e rígido — imediatamente viu tudo. Meu passaporte foi separado dos outros, todos deveriam seguir para a alfândega, menos eu, o que já era ruim o bastante (a todo momento me perturbam, é o primeiro dia, ainda não sou obrigado a escutar ladainha de escritório e no entanto a todo momento chega alguém querendo me levar para longe de você, isto é, levar você para longe de mim, mas não vão conseguir, não é, Milena?). Enfim, assim foi, porém você imediatamente se pôs ao trabalho. Chega um policial da fronteira — simpático, honesto, austríaco, solícito, afetuoso — e me leva através de escadarias e corredores para a área de inspeção. Lá, com um problema com o passaporte parecido com o meu, havia uma romena, judia, que era também, curiosamente, uma de suas mensageiras, você, anjo dos judeus. Mas as forças inimigas são ainda mais fortes. O inspetor enorme e seu pequeno ajudante, ambos ranzinzos, magrelos e obtusos, pelo menos por enquanto, se encarregaram do meu passaporte. O inspetor foi rápido: “O senhor deve retornar para Viena e buscar o visto junto à administração da polícia!” Não consigo responder nada a não ser repetir e repetir: “Isso será terrível para mim”. O inspetor respondia repetidas vezes e da mesma forma irônica e irritada: “O senhor que pensa”, “Não é possível receber o visto por telegrama?”, “Não”, “Mesmo arcando com todos os custos?”, “Não.” “Não há nenhuma autoridade superior aqui?”, “Não”. A mulher, que via meu sofrimento com uma tranquilidade magnífica, pede ao inspetor que me deixe passar, pelo menos a mim. Tática muito fraca, Milena! Assim você não vai conseguir me fazer passar. Preciso voltar o longo caminho até a seção de passaportes e buscar minha mala, definitivamente já era tarde demais para partir hoje. Agora estamos sentados lado a lado na sala do inspetor, nem o policial sabia como me consolar, fora dizendo que seria possível estender a validade da minha passagem etc etc, o inspetor dera última palavra e se recolhera ao seu escritório privado, só restou o pequeno ajudante. Faço as contas: o próximo trem para Viena parte às dez da noite e chega por volta das duas e meia da madrugada. Ainda tenho as marcas de picadas dos insetos do Hotel Riva, será que meu quarto na estação Franz Josef está disponível? Não, não consigo um quarto de jeito nenhum, então posso ir (sim, às duas e meia da manhã) à Lerchenfelderstraße [onde morava Milena] e solicitar acomodação (sim, às cinco da manhã). Pois seja como for ainda preciso buscar o visto na segunda de manhã (vou recebê-lo no mesmo dia ou só na terça?) antes de ir até você e te surpreender na porta, que você abre. Deus do céu. Aqui o raciocínio se interrompe antes de prosseguir: E em que estado eu vou estar depois da noite e da viagem e já de tarde vou precisar partir novamente, no trem das 16h, e como vou chegar em Praga e o que dirá o Diretor, para quem preciso agora mandar outro telegrama e solicitar extensão de férias? Você certamente não quer nada disso, mas então o que você quer de verdade? Não há outro jeito. O único e passageiro alívio, me ocorre, seria pernoitar em Gmünd e partir logo cedo para Viena; já exausto de antemão, pergunto ao ajudante, sempre calado, se há algum trem pela manhã para Viena. Às cinco e meia da manhã, chegando lá às onze. Ótimo, então pegaremos esse, eu e a romena. Porém, aqui a conversa muda subitamente de direção, não sei como, e por uma repentina claridade o pequeno ajudante quer ajudar. Se pernoitarmos em Gmünd, ele, que estará bem cedo no escritório, nos deixará passar para Praga em segredo no trem local, então chagaremos por volta das quatro da tarde. Ao inspetor, precisamos dizer que viajaremos com o trem da manhã para Viena. Incrível! Ainda que apenas relativamente incrível, pois ainda precisarei enviar um telegrama para Praga. Mesmo assim. Chega o inspetor, encenamos uma pequena comédia em relação ao trem da manhã para Viena, o ajudante nos despacha adiante, mais tarde precisaremos visita-lo para discutir os detalhes, em segredo. Em minha cegueira, penso que isso tudo partiu de você, quando na realidade se trata do último ataque das forças inimigas. Agora eu e a romena saímos com calma da estação (o trem expresso que deveria ter nos levado para Praga continua lá, a checagem das bagagens realmente está demorando). Quão longe é a cidade? Uma hora. Ainda por cima isso. Mas eis que há também dois hotéis pertos da estação, iremos para um deles. Uma plataforma contorna os hotéis, cujos trilhos ainda temos que atravessar, mas agora vem um trem de carga, eu quero atravessar rápido mas a romena me segura, agora o trem parou na nossa frente e precisamos esperar. Uma desimportante adição ao infortúnio geral, pensamos. Mas essa espera, sem a qual eu não teria conseguido mais voltar para Praga no domingo, é precisamente o ponto de virada. É como se você, que correu pelos hotéis da Westbahnhof, agora batesse em todos os portões dos céus por mim, pois agora, correndo e sem fôlego, vem até nós o seu policial pelo caminho mais que longo desde a estação, gritando: “voltem rápido, o inspetor os deixou passar!”. Será possível? Momentos assim nos apertam a garganta. Precisamos pedir dez vezes até o policial aceitar nosso dinheiro. Agora correr de volta, buscar as malas na inspeção, correr com elas até o controle de passaportes, então para a alfândega. Mas a essa altura você já arranjou tudo. Não consigo continuar com o peso das malas, há um carregador de malas ao meu lado, chego na multidão do controle de passaporte, o policial me abre caminho, na alfândega, sem perceber, acabo perdendo o estojo com os botões de ouro, um funcionário os encontra e me entrega. Estamos no trem, logo partimos, finalmente posso limpar o suor do rosto e do peito. Esteja sempre comigo!
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Date
27/9/2024Tweet