O último esporro de Beatriz: Dante, Brod, Kafka
Dante
No canto 30 do Purgatório, Beatriz recebe Dante com um esporro.
Como o almirante que, da popa à proa,
Corre, por ver a gente mourejando
Nas naus por perto, e à voz a acoroçoa,
Vi, à esquerda do carro se inclinando
-- quando escutei meu nome pronunciado
(que só por isto aqui vou mencionando) --
Que a bela dama o rosto seu coroado
Pela nuvem de flores, de repente,
A mim volvia, lá desde o outro lado.
Embora o véu que lhe descia à frente,
Cingido pelo ramo de Minerva,
Não a mostrasse mui distintamente,
Ela seguiu, como quem ralha e observa,
E que se de algo aborrecido diz,
O mais penoso para o fim reserva:
“Olha-me bem! Eu sou, eu sou Beatriz.
Julgas-te digno de ascender ao Monte:
Não vês que o ser humano é, aqui, feliz?
(...)
Assim a mãe ao filho repreendido
Parece dura, dando-lhe a provar
O acre saber do zelo incompreendido.
Dante tem uma convulsão. Beatriz explica o esporro:
"Por algum tempo pude estar-lhe ao lado:
E à luz de meu inda infantil olhar,
Conduzi-o no rumo desejado.
Quando, porém, cheguei ao limiar
Da idade adulta, andando a nova vida,
Afastou-se de mim, e pôs-se a errar.
Ao ser de corpo em alma convertida,
E destarte mais bela e mais virtuosa,
Já não lhe fui, como antes, tão querida.
Volveu seu passo à via perigosa,
Correndo empós de uma ilusão fugace,
Que lhe acenava, pérfida, enganosa.
Roguei, ansiosa, a Deus que o inspirasse,
Aconselhando-o em sonho e pensamento,
Sem que nada, entretanto, lhe importasse.
Tanto se degradou que outro argumento
Não me restava à sua salvação
Senão mostrar-lhe o eterno sofrimento.”
(trad. Cristiano Martins).
Dante abandona a vocação para o bem, se perde no meio do caminho de sua vida, casa com outra, busca o prazer fácil e, por um plano arquitetado por Beatriz, é levado ao inferno para ver como é o mundo sem a bondade divina que renunciou.
Brod
Em 1918, Kafka e Brod trocam cartas sobre problemas conjugais. Kafka lia Ou-Ou, de Kierkegaard, também marcado pelo caso-não-caso com Regine Olsen, espelho de sua relação com Felice. Max Brod se vê como um pecador dividido entre a mulher e amante, que “não já não dormia, definhava, decaía”, entre a paz do casamento e da literatura (a mulher também era literata) e “Eros”. O canto 30 do Purgatório é invocado para convencer Kafka de que os dois, Brod e Dante, viviam a mesma situação. Kafka responde:
Kafka
Zürau, 27 de janeiro de 1918.
*Literalmente, algo como “ela morreu-lhe [ihm starb sie weg], mas você a deixa morrer-lhe [du aber läßt sie dir wegsterben]”. Kafka utiliza o mesmo pronome, sie (ela), sem diferenciação, tanto para Beatriz quanto para a mulher que Brod, um traidor consumado, deixa definhar, identificando ambas a uma só “ela”, Beatriz. O segundo sie pode referir-se também à terceira pessoal do plural, “elas”: “…mas você as deixa morrer-lhe…”.
_Caro Max, você tem razão quando diz que o mais profundo da vida sexual propriamente dita me é inacessível. Eu também acho. Por isso é que evito julgar essa parte do seu caso e me limito à afirmação de que esse fogo, que lhe é sagrado, não é forte o bastante para incendiar minhas resistências, as quais hoje compreendo. Por que interpretar o caso-Dante dessa maneira eu não entendo, mas, mesmo se a sua interpretação for correta, o caso dele é inteiramente diferente do seu, ao menos na forma como este tem se desenvolvido até agora: Beatriz morreu, já você a deixa morrer sempre que se sente impelido a abandoná-la*. Aliás, ao se casar com outra por vontade própria, também Dante, à maneira dele, abandonou Beatriz, o que não atesta a favor da sua interpretação._
Coda
Brod vê Beatriz segundo a tradição alegórica, imagem da bondade e da beatitude, uma guia [Führerin] que conduz o poeta para o bem, enquanto Kafka solapa o enviesamento do amigo lembrando que Beatriz, como a mulher de Brod, foi humana e pode morrer, assim se aproximando da interpretação de Erich Auerbach, em Figura: “na experiência de Dante, a terrena Beatriz lhe aparece como um milagre. Mas uma encarnação e um milagre são acontecimentos reais; [para figurarem quaisquer sentidos elevados] eles precisam acontecer na Terra, e encarnação é carne”. Kafka não reprime a traição em si, mas a interpretação elevada de Brod. É hilário que, para trazer Dante e Brod de volta à Terra, ele mostre que Dante ter seguido com a vida depois da morte de Beatriz equivale a tê-la abandonado — o que só faz sentido do ponto de vista elevado onde um dia reencontraremos quem nos abandonou e seu esporro nos tirará a força dos joelhos.
Kafka, Franz. Briefe 1918 — 1920. Kritische Ausgabe. Fischer, 2013.
Date
3/7/2024Tweet