algumas coisas #1
A pessoa exausta de trabalhar até tenta, no fim do dia, emergir de volta, olhar para dentro em busca de alguma profundidade, mas não vê nada que preste. Então recorre aos cadernos, a páginas que nem lembra de ter escrito. Nesse momento, você as encontra, rasga as mais ridículas e as expõe na Internet. Vamos apontar e rir juntos. Com esse truque barato talvez haja o que extrair de uma primeira pessoa.
começo de 2023
Uma lembrança pousa trazendo no bico um nome que também dizia se afundar em trabalho para não pensar. Estamos juntos novamente, se nunca estivemos, estamos agora. Lembrar de coisas que não existiram para fazer frente a uma existência que mal existe.
A: Aqui no hotel os chuveiros não ficam no banheiro, mas ao lado da cama, e o box de vidro ao lado da banheira de pedra polida, quentinha, num canto do quarto. Água lânguida onde dormimos, dormindo conosco. A janela dá para uma piscina cuja borda se confunde com o mar, como se não fosse possível sair de um sem entrar no outro. Durmo num quarto de vidro ao som das ondas.
B: Um hotel de águas.
A: E vazio. São piscinas solitárias. Exalam um burburinho alegre que roça na tristeza, vozes humanas que se perderam ou que não ouvimos. Qualquer um pode virar piscina.
B: Em outros tempos, mulheres viravam riachos, córregos e fontes d’água. Seria esse o verdadeiro apelo comercial do hotel? Produzir uma continuidade entre o mar, os rios e as piscinas, entre antes e hoje, recuperar no calmo erótico da água o perigo mítico de virar piscina.
A: Como punição pela solidão.
B: Encontraram o fragmento duma efígie de Afrodite de 43 a.C no Tâmisa. Da deusa do amor sobrou um naco de bunda no fundo de um rio.
A: Não conseguem esconder de onde vem a água.
B: 12 horas de trabalho hoje. Não sobrou uma alegria no mundo.
A: Sobrou esta piscina.
Na mitologia romana, rios, deuses fluviais, são homens ciumentos e poderosos, senhores feudais praticamente. Em cosmologias indígenas, são a origem dos povos, fonte dos humanos e animais, lembrete de que os seres já foram iguais.
Pela primeira vez, um estado da federação, Roraima, concedeu direitos de vida a um rio. Progresso, no sentido positivo do termo, parece significar alcançar a contemporaneidade do mito.
Mitologia fluvial comparada. Anoto pois não posso mais contar para A.
abril de 2023
Café com X. Nos divertimos por horas lendo e rindo de textos antigos um do outro.
X: Tentei inverter o processo de objetificação, reduzir o sujeito e a minha atração por ele a objetos.
B: Só que no trecho tal você se narra como objeto, atraída pelo modo como ele te olha ao atravessar a rua.
X: Foda. É tudo mentira, não sinto nada disso. São opções estilísticas.
O moto-taxi chega, X sobe na garupa e some no vento dos túneis. Chego em casa agitado. Eu havia começado a ler Malina, de Ingeborg Bachmann, porque alguém em Viena deve ter despachado o papel errado, que atravessou uma fileira de salas administrativas até resultar numa bolsa de estudos de cinco meses para mim, e escolhi Malina para não chegar lá tão ignorante da literatura austríaca, e algo em Malina me lembrava X, o que eu disse a ela, e ela:
– Conhece o termo bimbofication?
trecho de Malina, traduzido por mim
_… e todos os livros espalhados por essa cripta, ninguém quer saber deles, para que serve esse tipo de livro, deve haver outros tipos, livros que enlouqueçam as pessoas de alegria, você mesma vive louca de alegria, por que então não escreve de acordo? Publicar e vender essas misérias, multiplicá-las no mundo, é repulsivo, todos esses livros são repulsivos. Que obsessão é essa com a escuridão, tudo é triste e fica ainda mais triste nessas folhas. Olha aqui: SOBRE UMA CASA DOS MORTOS, e eu já me desculpava.
Sim, mas, digo constrangida.
“Mas” nada, diz Ivan, e todo mundo sofrendo por conta da raça humana e suas chateações e pensando em guerras e já planejando novas guerras, mas quando você toma café comigo ou quando bebemos vinho e jogamos xadrez, onde está a guerra, onde a humanidade faminta e moribunda? e você lamentando por tudo, lamentando por perder a partida, ou porque logo vou estar faminto, e está rindo por quê? por acaso a humanidade tem do que rir no momento? Mas não estou rindo, digo, e contudo não tenho como não rir, e empurro a infelicidade para longe, pois aqui não há nenhuma infelicidade, aqui onde Ivan se senta comigo para comer. Só consigo pensar no sal que ainda não está na mesa, e na manteiga que esqueci na cozinha, e não o digo em voz alta, mas planejo encontrar um livro bonito para Ivan, pois ele não quer que eu escreva sobre os três assassinos, não quer que eu multiplique a miséria do mundo através de nenhum livro, e logo não o escuto mais.
(…)
Você é transparente demais, diz Ivan, vê-se o tempo todo o que se passa contigo, brinque um pouco, encene algo pra mim! mas o que eu poderia encenar para Ivan? A primeira tentativa de repreendê-lo, por ele não ter me ligado ontem, por esquecer de me trazer cigarros, por nunca saber qual marca eu fumo, termina numa careta, pois, ao abrir a porta quando ele chega, já não me resta nenhuma repreensão, e em meu rosto Ivan lê imediatamente a previsão do tempo: sem nuvens, quente, irrupção do mormaço, limpo, cinco horas ininterruptas de tempo bom.
Por que não me disse logo?
O quê?
Que você viria até mim de novo
Eu não te diria
Viu só
Para te obrigar a continuar jogando
Não quero jogar
Sem jogo não funciona
Bimbofication como estratégia, opção estilística, que a permite narrar o próprio dilaceramento, encenado como uma pena de morte medieval. Os dois homens, Ivan e Malina, os temas, a guerra recente, a história da Europa, ela mesma, são os cavalos aos quais se ata, que disparam cada um para um lado.
Agora leio Thomas Bernhard, Holzfällen (Derrubar árvores). Bachmann ama tanto Viena quanto Bernhard a odeia e trava guerra contra ela, seus artistas e literatos. Talvez Viena pareça o Rio de Janeiro. Cheguei em casa agitado por conta da conversa e anotei aqui.
Nada disso existe, só estava no meu caderno.
Date
8/7/2023Tweet