Cute or Beautiful & outras deprês
Penso em voltar a me informar, mas o YouTube me recomenda o vídeo Cute or Beautiful.
Um streamer gringo flana por Tóquio e encontra Lisa, uma garota japonesa bebendo com um grupo de garotos numa esquina movimentada. Enquanto os moleques arrozam-na, o gringo mantém distância, crescendo em dignidade.
“Você me acha fofa ou linda?”, pergunta ela, bêbada.
Ela tem namorado, coisa que ele não desrespeitaria na frente de dez mil espectadores, embora tenha ficado mexido. Enquanto isso, xingam Lisa nos comentários: só dá bola porque é um youtuber famoso, caçadora de gaijins, attention whore. O streamer cederá às investidas de Lisa?, sinto despontar a pergunta em meu âmago, notando que é ela que sustenta as dez mil pessoas acompanhando o que será do sonho coletivo de ser abordado por uma japonesinha.
Até há pouco o YouTube não me conhecia. O surgimento de um feed que apela para tudo que trago de ruim coincide com os últimos meses ou talvez ano, com cuja pele morta ele vinha sendo costurado enquanto eu esbravejava “é assim que este site acha que eu sou? Este lixo ele não cata.”
Agora estou radicalizado.
A procissão segue implacável. Clico em “Power of a Smile”: uma estudante se apresenta perante um juiz para receber desconto na multa por estacionar em local proibido durante uma nevasca. Sob olheiras profundas, a menina ri tentando se explicar, envergonhada e esforçada. Ao fim, o juiz, espécie de apresentador de TV ou talvez youtuber, admite que sabia que a menina tirava vantagem dele, “mas a única coisa que não se pode fingir é um sorriso.”
14 milhões de visualizações. A simpatia da menina é elogiada nos comentários.
Enojado comigo mesmo, me lembro que queria me informar. E acontece o que parece acontecer sempre nessas horas: ao conseguir retomar minha agência e sair da reiteração de solidão heterossexual, o algoritmo dá uma guinada abrupta na mesma direção, oferecendo o que eu real, suposta e inicialmente queria e, assim, não me deixando escapar: no Rio, uma mulher sofria de diversos transtornos, foi pedinte, fez um meme e de repente ficou famosa, foi na TV, começou tratamento psiquiátrico, parecia engatar seu canal no YouTube, uma história de vitória e superação quase impensáveis, e é encontrada morta numa praia em Araruama com dois tiros na cara.
Araruama, interior do RJ, perto de onde nasci - uma livre-associação à qual o YouYube não conseguiu se adiantar.
Imagina observar uma ligeira, ligeiríssima melhora mental e já querer desdenhar as carícias noturnas do YouTube em favor dum engajamento autêntico com mundo, com informação de qualidade…
Date
1/6/2022Tweet